Após um acidente devastador, ela acorda em um hospital sem memória. Seu marido, um homem gentil e devotado, a ajuda a reconstruir o passado. Contudo, conforme pequenas lembranças fragmentadas começam a emergir, algo não parece se encaixar. Quem é realmente aquele homem que ela chama de marido? E por que algumas memórias insistem em retornar como pesadelos distorcidos? Ao buscar respostas, ela descobrirá verdades perturbadoras sobre si mesma, sobre ele e sobre o acidente que mudou tudo. Afinal, a memória pode ser sua maior aliada... ou sua pior inimiga.
A consciência veio como um vulto, um ponto de luz atravessando um quarto escuro. Primeiro, o zunido baixo nos ouvidos, como um enxame distante. Depois, a sensação do corpo: um peso afundado em algo macio, lençóis tíbios e o cheiro sórdido de álcool e látex. Algo estava errado. Tudo estava errado.
Abri os olhos.
A luz me ofuscou, obrigando-me a fechar as pálpebras novamente. Gemei. Minha cabeça parecia um tambor, uma dor pulsante em tênue compasso. Tentei levantar o braço, mas o peso era demais. Então senti uma presença perto. Eu não estava sozinha.
- Clara? - A voz era masculina, baixa e acolhedora. - Clara, você está me ouvindo?
Pisquei até conseguir abrir os olhos novamente. A imagem de um homem se formou à minha frente. Ele estava sentado ao lado da cama, segurando minha mão com cuidado, os dedos quentes contra minha pele fria. Tinha cabelos castanhos, um pouco bagunçados, e olhos profundamente tristes, como se carregassem um peso invisível.
- Quem... quem é você? - Minha voz saiu rouca, como se não fosse usada havia dias.
Os olhos dele se arregalaram, mas ele rapidamente disfarçou o choque com um sorriso forçado.
- Sou eu, Daniel. Seu marido.
Marido? A palavra soou estranha, como uma língua que não me pertencia. Tentei puxar da memória uma imagem, qualquer coisa que justificasse aquela presença, mas minha mente era uma vastidão vazia. Apenas o zunido e a dor persistente.
- Eu... eu não lembro... - murmurei, sentindo meu coração bater mais rápido. - O que está acontecendo?
Daniel apertou minha mão com mais força, como se o simples toque pudesse me segurar ali.
- Você sofreu um acidente, Clara. Um acidente de carro. Está no hospital há quase duas semanas. Os médicos disseram que é normal... a perda de memória, digo. Mas vai passar. É temporário.
Encarei-o por um longo instante, processando aquelas informações. Um acidente. Hospital. Perda de memória. Minha mente gritava por respostas, mas não havia nada ali. Era como olhar para um livro de páginas em branco.
- Eu não lembro de nada - sussurrei. Uma lágrima escorreu pelo meu rosto sem que eu percebesse. - Nada.
Daniel se inclinou mais perto, levando a outra mão para secar minha lágrima.
- Ei, vai ficar tudo bem. Você está viva, isso é o que importa. Vamos superar isso juntos. Eu estou aqui, Clara. Sempre estive.
Algo naquelas palavras me fez encolher involuntariamente. Elas deveriam trazer conforto, mas pareciam forçadas, como se fossem parte de um roteiro que ele praticou muitas vezes. Havia algo naquele olhar que eu não conseguia decifrar.
- Posso... posso ficar sozinha? - pedi, desviando os olhos.
Daniel hesitou. Seus dedos ainda seguravam minha mão com firmeza.
- Tem certeza? O médico disse que...
- Por favor.
Depois de um instante, ele assentiu lentamente. Soltou minha mão e se levantou.
- Tudo bem. Eu vou pegar um café. Volto logo.
Não respondi. Fiquei apenas observando enquanto ele saía do quarto, deixando para trás um rastro de silêncio e um cheiro fraco de colônia masculina. Assim que a porta se fechou, soltei um suspiro trémulo e passei as mãos pelo rosto.
Quem era aquele homem? Quem era eu?
Sentia-me perdida em um corpo que não reconhecia. Meu olhar vagou pelo quarto branco, impessoal, com móveis funcionais e uma janela com cortinas semiabertas. A luz do dia entrava sem cerimônia, iluminando o monitor ao lado da cama, que apitava ritmicamente junto ao meu coração.
Com um esforço doloroso, sentei-me. Minha cabeça latejou em protesto, mas me obriguei a ignorar. Olhei para minhas mãos, frágeis e pálidas. Uma fina pulseira hospitalar prendia-se ao meu pulso, com um nome impresso: Clara Almeida, 27 anos.
"Clara Almeida...", repeti mentalmente. O nome era meu, mas não parecia meu.
Estendi a mão trémula até o criado-mudo ao lado e encontrei um pequeno espelho de bolso. Abri-o com cuidado, como se tivesse medo do que iria encontrar. O rosto que me encarava era o de uma estranha: olhos castanhos fundos, cercados por olheiras, cabelos escuros despenteados e uma pele sem vida. Não havia nada familiar naquela mulher. Nada.
- Quem é você? - murmurei para o reflexo, sentindo uma angústia crescente apertar meu peito.
Antes que pudesse processar mais, a porta do quarto se abriu novamente. Fechei o espelho rapidamente e ergui os olhos. Desta vez, não era Daniel. Era uma enfermeira, com um sorriso profissional e olhos pacientes.
- Como você está se sentindo, dona Clara?
- Eu... eu estou bem - menti.
A enfermeira ajustou o soro e verificou as máquinas, fazendo pequenas anotações. Antes de sair, voltou-se para mim mais uma vez.
- Seu marido está cuidando muito bem de você. Ele não saiu do hospital nesses últimos dias.
Forcei um sorriso em resposta. As palavras ficaram ecoando em minha mente: seu marido. Tudo parecia perfeito demais, uma história cuidadosamente montada.
"Por que eu não consigo acreditar nele?", pensei.
Quando a enfermeira saiu, o silêncio voltou a dominar o quarto. Fechei os olhos e tentei forçar minha mente a lembrar. Era como se houvesse um muro, algo bloqueando tudo. Mas, por um breve segundo, uma imagem surgiu. Rápida, borrada, mas nítida o suficiente para fazer meu coração parar.
Chuva. Faróis. Um grito.
Abri os olhos, ofegante.
Algo estava errado. E eu precisava descobrir o que era.
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