Alguns me olhavam com tanta curiosidade que parecia que eu era uma peça rara de um museu, enquanto outros pareciam revirar os olhos com des-dém perante uma recém-chegada que nasceu e cresceu no meio de humanos comuns. No meio disso, uma garota ruiva sentada no fundo ignorou comple-tamente minha curta apresentação, compenetrada no que parecia ser o traba-lho de uma vida. Seus dedos se moviam silenciosa e graciosamente sobre um papel, e seus olhos brilhavam perante algo que poderia ser uma obra-prima, ou simplesmente rabiscos...
Na minha cabeça, tudo o que eu queria era sair daqui, voltar correndo para Heington e fingir que nada acontecera nas últimas semanas, mas era im-possível ignorar a grande convocação. Na melhor das hipóteses, eu seria presa e julgada como rebelde, mas sabia que não iria parar por aí.
A grande convocação foi uma decisão tomada durante a grande confe-rência dos clãs, realizada na cidade de Heington, localizada a leste de Siram. Heington é uma importante metrópole humana, central nas negociações e na distribuição de mercadorias entre os clãs. Devido à sua excelente localização e ao fato de não pertencer a nenhum dos clãs, ela era considerada o local neutro ideal para sediar as importantes conferências dos alfas, que ocorrem anualmen-te.
- Ei, novata! Pode se sentar aqui ao meu lado. - Um garoto de apa-rência atlética, cabelos pretos encaracolados e uniforme amassado apontou para a cadeira vizinha perto dele. Preferi uma cadeira mais atrás, enquanto passava pelo corredor, percebi uma piscadela convencida do garoto, achando que eu tinha dado bola.
Revirei os olhos, passei direto e me detive no assento vago em frente à ruiva distraída. Lançando um rápido olhar para o papel sobre o qual ela con-centrava sua atenção, percebi pequenos círculos pretos traçando um caminho sobre um conjunto de linhas. Eram notas musicais que compunham uma me-lodia estranhamente familiar.
Sentei-me calmamente, sorrindo, enquanto o professor de biologia dava prosseguimento à aula. Embora tivesse perdido alguns dias de aula no semestre por conta da mudança, não me sentia nem um pouco perdida com o conteúdo explicado.
- E assim vemos como a genética... - O som estridente do sinal tocou, fazendo com que os alunos se levantassem rapidamente e saíssem apressados da sala. Guardei calmamente o meu caderno de volta na mochila e percebi o pro-fessor resmungando algo para si mesmo.
- Eliza! - chamou-me assim que passei por ele. Olhei firmemente pa-ra os seus olhos castanho-claros, o que o fez desviar o olhar enquanto cutucava a sua barba branca.
- Precisa de algo? - perguntei, com monotonia na voz. Não queria prolongar a conversa, já que ainda precisava encontrar a sala da próxima aula, e chegar atrasada no primeiro dia não seria bem-visto.
- Sei que é tudo novo para você, talvez não esteja conseguindo acom-panhar as coisas...
- Estou bem! - interrompi-o antes que começasse com a conversa de fingir que entendia o que estava passando e que podia me ajudar. Já ouvi a mesma conversa dezenas de vezes essa semana e não precisava da pena de nin-guém. Vir para cá foi uma escolha minha e estava me adaptando como podia. - Professor, agradeço a preocupação, mas isso não é necessário.
Tentei soar o mais suave e direta possível. Encarei-o seriamente, espe-rando por sua liberação, e o ouvi suspirar enquanto me olhava de forma um pouco diferente.
- Eliza, conheço o seu histórico e já imagino o desempenho que terá por aqui. Não deixe que essas mudanças a impeçam de continuar brilhando. - Sorri para ele e assenti. O colégio Siram não é nada comparado à Genius School, colégio que eu frequentava até o semestre passado, mas não podia ex-por isso abertamente ou poderia perder minha vaga no único colégio deste vilarejo com ensino aceitável. - Annie, poderia mostrar para Eliza onde é a próxima sala?
Olhei para trás e percebi que a ruiva distraída ainda estava lá sentada, a única que ficou para trás.
- Annie! - O professor caminhou até ela e arrancou um fone sem fio do ouvido dela, o que finalmente a tirou do transe.
- Oi? O quê? A aula acabou? - questionou ela, completamente per-dida.
- Annie, poderia acompanhar a senhorita Eliza até a próxima aula? Acredito que vocês estejam na mesma turma.
- Eliza? - Esta talvez tenha sido a primeira vez que ela olhou para mim desde que tirou os olhos do seu caderno de música. Me perguntava como era possível alguém se perder tão completamente dessa forma.
- Olá, prazer! - disse, acenando para ela. Um olhar de compreensão pôde ser visto imediatamente em seu rosto e suas bochechas com sardas fica-ram avermelhadas. Ela enfiou as coisas de qualquer jeito na bolsa e caminhou em minha direção, mantendo o olhar baixo ao longo do caminho. Resolvi quebrar o silêncio primeiro.
- Annie, certo? - Ela assentiu de leve, mas manteve o olhar para bai-xo. Paramos no corredor de frente para a porta da próxima sala. - Percebi que você estava escrevendo uma partitura. Posso dar uma olhada?
- Bem, sim... Não! É que ainda não está pronta - tentou se explicar enquanto apertava as laterais da sua saia de forma tímida.
- Sou compositora também. Talvez eu possa ajudar. - Ela olhou dire-tamente para mim, talvez para avaliar a veracidade das minhas palavras.
Percebendo que eu falava sério, ela abriu a mochila e me entregou seu precioso trabalho. Peguei uma caneta e rapidamente comecei a corrigir as notas fora de tom e ritmo, bem como completar a última linha que faltava. Imagi-nando o "estrago" que eu estava fazendo, ela arregalou os olhos, paralisada, esticando os braços trêmulos na tentativa de recuperar seu caderno.
- O que você está fazendo? Me devolve!
- Pronto! - Não me dei ao trabalho de explicar. Simplesmente devol-vi a composição e entrei na sala, deixando-a para trás, desconcertada.
"Disse que ia manter o perfil baixo, mas já começou a se mostrar", murmurou minha loba dentro de mim.
"Não pude evitar. A falta de atenção dela já estava me irritando. Consi-dere meu único ato de boa vontade", retruquei de volta para a minha loba.
Minha loba, Lisa, estava certa. Meu objetivo era tentar passar desperce-bida e terminar esse ano sendo invisível. Para isso, assumi um visual mais nerd, com roupas folgadas, óculos grandes e mantive meus longos cabelos negros presos em um coque. Se eu não conseguisse passar invisível por esse quase um ano e meio que me faltava para terminar o ensino médio, então acabaria en-trando em apuros.
- Viu? Eu consigo - sussurrei para mim mesma após o toque do sinal que punha fim ao meu primeiro dia de aula.